Natália Zuccala nasceu em São Paulo, em 1990. É autora de “Cheia” (2021, Ed. Urutau), do livro de contos “Todo mundo quer ver o morto” (Ed. Patuá, 2017) e do projeto “Agora estou aqui” (www.agoraestouaqui.com, 2020). Formada em Letras pela FFLCH-USP, é também dramaturga, professora e está em formação como psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientae.
Os tais caquinhos não tem medo de encarar os pratos de self-service brasileiros
Em seu primeiro romance, Natércia Pontes nada de braçada na miséria, sem medo de perdigotos, transtornos, ascos e outras viscosidades humanas. Entre baratas e mousses de chocolates, no entanto, encontramos formas singelas e inesperadas de afeto.
Os tais caquinhos (Companhia das Letras, 2021) é palco de Lúcio, Abigail e Berta, respectivamente o pai e suas duas filhas. Eles vivem no imundo apartamento 402, local onde o acúmulo compulsivo torna-se a flora ideal para a cultura de baratas:
Naquele lar as baratas não sofriam acuadas. Mesmo que, num mau dia, uma ou outra fosse esmagada pela ira existencial dos inquilinos (minha família), podia-se muito bem considerar a nossa casa um local seguro para esses dóceis insetos de patinhas serrilhadas. Os insetos adoravam dormitar nas xícaras, explorar os recônditos dos nossos tênis, mergulhar o resto de água do garrafão, palmilhar nossas escovas de dentes. (p. 10)
Além da liberdade garantida a esses insetos, as irmãs adolescentes também desfrutam de uma criação permissiva, para dizer o mínimo. Ainda no Ensino Médio, as duas parecem atuar sem que haja uma interferência paterna no sentido de apoiá-las ou mesmo repreendê-las: vão ou deixam de ir à escola, estudam ou deixam de estudar, aparecem e desaparecem de casa e o máximo que o pai consegue fazer é lamentar, ou aconselhar, mas não intervir realmente em suas decisões. Por isso, muitas vezes este personagem aparece como mais um dentre os objetos acumulados na casa, acomodando-se no meio das tralhas e da sujeira, timidamente impotente, presente na medida em que nem ajuda, nem atrapalha.
Todo o solo sobre o qual Natércia constrói o edifício de “Os tais caquinhos” parece ser justamente o abandono
Por um lado, a negligência de Lúcio nos cuidados com as duas garotas e com o lar é incômoda, por outro, a confiança inédita e sincera que ele deposita em suas filhas chama atenção. Acontece que este não é um pai que não se importa com suas filhas, simplesmente. Pelo contrário, ele aparenta fazer o melhor que pode em sua função, que consiste em delegar a elas a responsabilidade por si mesmas, acreditando e confiando em seu discernimento. Sem sombra de dúvidas, essa não é uma tarefa que todos os adultos são capazes de cumprir.
A despeito da confiança depositada nas duas adolescentes, Abigail relata situações em que sentimos falta de um colo que a acuda, de uma mão que intervenha, de cuidado. No 402, a ausência de comida à mesa ou lençóis limpos sobre a cama às vezes expulsa seus inquilinos. Isso acontece principalmente com Berta, a mais nova entre as duas, que parece conviver mais com a família de Mariana, sua amiga, do que a sua própria. A mais velha, por outro lado, acomoda-se melhor entre as baratas e, por isso, é através de sua voz e de seus diários que conhecemos a narrativa.
No entanto, não é somente a relação paterna que grita desamparo. Todo o solo sobre o qual Natércia constrói o edifício de Os tais caquinhos parece ser justamente o abandono. Em primeiro lugar o mais material de todos, o materno: conta-se, no começo da leitura, que Zoma, a mãe de Abigail e Berta, vai embora com duas irmãs mais novas, Huga e Ariel. Depois desta primeira notícia, que aparece sem mais explicações, não ouvimos muito mais falar das três. Elas apenas não estão ali e sua ausência é contundente.
Aparece também, de maneira muito sintomática, a falta de alguma espécie de maternagem, que se evidencia na displicência em relação à casa, à limpeza, ao corpo, à saúde, à nutrição, aos estudos, etc. Sabemos hoje, ou deveríamos, que esta função cuidadora não precisa ser protagonizada por uma mulher, mas ela está associada à figura da mãe em nossa cultura e, no caso do romance, desaparece na ausência dela. Por mais que não saibamos o quanto a mãe era capaz de maternar, enquanto presente, o seu sumiço dá lugar à falta de cuidado. Cuidado este que nenhum dos integrantes desta família parece conseguir performar.
Ao final da história, numa das cenas mais belas e emocionantes de todo livro, a mãe figura como uma parte amputada do corpo e a não internalização de sua função aparece no contorno físico da personagem:
Querido diário, eu não tenho mãe há muito tempo. Eu não tenho mão. Eu não tenho quem me sugue o catarro do nariz. Eu não tenho peito. Eu não tenho quem me conserte as maçanetas da porta. Eu não tenho boca. Eu não tenho quem me defenda numa carta comprida. Eu não tenho pé. Eu não tenho quem me tire a cera do ouvido com uma pinça. Eu não tenho olho. […] (p.128)
A narrativa, porém, não gira em falso num discurso moralista, apenas afirmando a necessidade de zelo ou de maternagem, pelo contrário: penetra fundo na imundície que narra e fá-la germinar beleza. Por meio de uma linguagem que propositalmente não poupa repetições – afinal, descreve o cotidiano ao lado de um acumulador compulsivo -, o romance explode vida da mais pujante categoria em meio à putrefação, feito um cogumelo que se alimenta da decomposição.
Natércia é corajosa e autêntica porque não presta reverências e nem se submete ao asseio da dita alta literatura, esta que normalmente é muito mais europeia do que brasileira
Nesta obra, brotam imagens como vermes recém-nascidos: pululando nos ambientes menos higiênicos, sim, mas como sinal de vida, reprodução, força, pujança, transformação, fertilidade, surgem no seio do que é orgânico, vivo. Não nos esqueçamos que a limpeza pode significar cuidado, claro, mas também esterilidade. Descrições primorosas como a que vem a seguir são apenas um exemplo da fecundidade literária da autora:
Numa tarde quente um gafanhoto escapou do pôster colado na parede do quarto. Ele tinha o abdômen carnudo e era enorme, do tamanho de uma galinha. Exibia um verde-claro reluzente, e os olhos eram opacos e inexpressivos, como se usasse óculos escuros. Sua carcaça se dividia em compartimentos azeitados, e sua cabeça lembrava um elmo verde. Da boca eclipsada pelo rosto obtuso, de camelo, pendiam garras dentadas. […] Todo o corpo de cartucho em forma de linguiça era coberto por uma delicada camada de pelos finíssimos. As asas, encolhidas e rendilhadas como um brocado, uma cota de malha, permaneciam imóveis. (p.16)
Sem medo de hibridismos, Natércia costura uma belíssima camada de gordura em Kafka, trazendo para os trópicos seu gelado inseto. Mais especificamente ao Brasil: esse país que não tem medo de meter catupiry em absolutamente nada, que gosta de pratos de self-service que misturam sushi com picanha; o país da farofa enquanto iguaria culinária, prática pública e adjetivador.
Natércia é corajosa e autêntica porque não presta reverências e nem se submete ao asseio da dita alta literatura, esta que normalmente é muito mais europeia do que brasileira; porque encara de frente o que é ser brasileiro como Mário de Andrade o fez: sem medo de nossa sujeira, nossos excessos, nossas baratas, nossas cores, nosso calor, nosso abandono, nossas misturas, nossa violência, nosso humor; porque não tem medo das nossas vozes.
Apenas um outro escritor desta mesma geração, que seja de meu conhecimento, havia se mostrado tão disposto a encarar os ambientes inóspitos do Brasil com a mesma coragem e aptidão para a beleza e o humor: Victor Heringer.
Curiosamente, no Queím, bairro suburbano fictício do Rio de Janeiro de O amor dos homens avulsos (Companhia das Letras, 2016), Heringer conta também uma história sobre formas de paternagem incomuns, excessos, abandonos e violências. Dois livros que na mesma medida são capazes de fazer rir e de emocionar, feito nosso bom e velho brega.
Seja no excesso de repetições, seja no fisting narrativo que toca fundo o cólon humano, Natércia e Heringer mandam às favas o lirismo fácil, as metáforas rasas, o acesso à emoção por vias curtas. Os narizes sensíveis, acostumados ao didatismo das lições de moral contemporâneas, a neologismos pueris e imagens cor de rosa, podem ser incapazes de encontrar profundidade em meio à sujeira de Os tais caquinhos. Mas, para esses, não faltarão outros best-sellers que se reproduzem como baratas no mercado editorial de hoje. De adocicado aqui, apenas o cheiro de baratas.
A força literária desta obra, porém, não se limita à sua capacidade descritiva impressionante e à pujança da narrativa, mas também (e talvez principalmente) a uma sutileza inédita que dormita sem pressa e delicada, no subterrâneo de todo o romance.
Enquanto, numa via mais explícita, abordam-se esses ambientes pouco aprazíveis; vemos também caminhar um traçado fino e sutil que vai sendo cerzido, sem estardalhaço, por entre as linhas. Com uma delicadeza que contradiz o contexto, a autora constrói um brilhante e inquebrantável fio narrativo, um fio de ouro perene do começo ao fim: o amor de Lúcio. Recebemos notícias da força do afeto deste homem nos detalhes, força esta que o faz lutar contra a própria compulsão, contra a própria miséria.
Como fazem os maiores autores, Natércia deixa que este fio vá, feito um rio subterrâneo, impregnando as ações e os nós da narrativa. Talvez essa seja uma das ascensões à beleza mais bem construídas e menos óbvias que eu presenciei enquanto leitora.
Os tais caquinhos analisa a família de Abigail, e o Brasil, através de seu exame de fezes
Os tais caquinhos não é sobre acumulação, lixo, sujeira, mas sobre a epilepsia dos homens na sua construção de laços; sobre as lutas enormes que travam consigo mesmos para poderem estar com outros; sobre o quanto escapa da mão e ricocheteia na cara o afeto que buscamos amarrar; sobre desamparo, sim, claro, mas, mais do que isso, sobre o amparo possível. E nesse contexto, um dos gestos mais impressionantes de Lúcio é a promessa de mudar de apartamento, numa tentativa de modificar seu modus operandi, ou, o que me fez emocionar mais, a promessa de pagar as próprias dívidas.
Não existe nada que um pai ou uma mãe possa fazer de mais cuidadoso e altruísta, em relação aos filhos, do que sanar suas próprias dívidas (as materiais e, principalmente, as imateriais). Em primeiro lugar, porque, sabemos, elas passam de geração em geração, se não solucionadas; em segundo, porque elas são imensamente difíceis de encarar: pagá-las pressupõe que enfrentemos a nós mesmos, que nos deparemos com nossos pontos cegos e abramos mão dos nossos vícios, das nossas compulsões, dos acúmulos, das repetições. Cuidar de si mesmo para cuidar de outro – como quem coloca primeiro a máscara de oxigênio em si e depois nas crianças -, é uma das formas mais difíceis, belas e frutíferas de ser pai, mãe, de ser um adulto em sociedade.
Essa promessa tão simbólica por parte de Lúcio, porém, passará despercebida pelos ouvidos que buscarem encontrar no romance os ditames didáticos das oficinas literárias. Os tais caquinhos analisa a família de Abigail, e o Brasil, através de seu exame de fezes. Lá, encontra os restos antropofágicos da nossa alimentação sui generis. Assim, a autora dá de parir a uma estética própria, que não perde a qualidade e o rigor, ao amparar gentilmente a nossa miséria; é mãe das Abigais, Bertas e Lúcios, pois encontrou lugar para eles existirem, na beleza de suas histórias, entre suas palavras; tem fôlego e profundidade, por não temer a si mesma e nem a nós. Natércia também quer pagar dívidas, as nossas.